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O “Incômodo” MRM

Mudar hábitos no hangar é mais difícil que consertar um avião

O MRM — ou Gestão de Recursos de Manutenção — é uma abordagem voltada ao ambiente de manutenção de aeronaves, que adapta muitos dos princípios do Crew Resource Management (CRM) utilizados na cabine. Em vez de focar apenas no aspecto técnico‑mecânico da manutenção, o MRM enfatiza a comunicação, a consciência situacional, o trabalho em equipe, a gestão da carga de trabalho, a supervisão e a cultura de segurança no contexto de operações de manutenção de aeronaves.

A origem do MRM está ligada ao reconhecimento de que muitos incidentes aeronáuticos ― especialmente os relacionados à manutenção ― não decorrem exclusivamente de falha técnica, mas de falha humana ou de processos humanos latentes.

Por que foi criado?

As principais causas que levaram ao desenvolvimento de programas de MRM são:

  1. Erro humano na manutenção: Pesquisas indicam que uma parcela significativa dos acidentes aeronáuticos envolve erro humano de manutenção ― seja por comunicação deficiente, supervisão insuficiente, fadiga, transição de turno mal feita, ou normas informais.
  2. Reconhecimento de que procedimentos técnicos não bastam: Ainda que existam procedimentos, manuais, check‐lists e treinamentos técnicos, constatou‑se que fatores humanos e organizacionais (como cultura, hierarquia, ambiente de trabalho) eram “gargalos” para a segurança.
  3. Integração à cultura de segurança: À medida que a aviação evoluiu, tornou‑se claro que não bastava “fazer certo o que está escrito” ‑ era preciso criar um ambiente onde a equipe de manutenção pudesse comunicar riscos, entender como seu trabalho se encaixa no todo, e trabalhar com suporte de liderança e supervisão.

Em resumo: o MRM surgiu para preencher a lacuna entre treinamento técnico e realidade operacional, focando no fator humano, no contexto da manutenção e na cultura organizacional de segurança.

Benefícios da implementação

Quando bem implantado, um programa de MRM pode trazer benefícios relevantes:

  • Redução de erros e incidentes de manutenção: Ao melhorar comunicação, supervisão, e trabalho de equipe, diminui‑se a probabilidade de falhas que resultem em risco de voo ou interrupções. Por exemplo, programas demonstraram melhoria nas atitudes dos técnicos após o treinamento.
  • Melhoria da cultura de segurança: Um ambiente onde os técnicos se sentem encorajados a relatar problemas, levantar preocupações e questionar decisões fortalece a resiliência operacional.
  • Melhoria de eficiência operacional: Menos retrabalho, menos interrupções emergenciais, menos “surpresas” de manutenção não previstas — que tudo junto reduz custos e melhora disponibilidade de aeronaves.
  • Integração aos sistemas de gestão de segurança (SMS): O MRM passa a fazer parte integrante da estrutura de gestão de risco da organização de manutenção/operadora: não é apenas um curso isolado, mas um componente contínuo de supervisão, reporte e melhoria.

Esses benefícios mostram que o investimento em MRM pode ter retorno não só em termos de segurança, mas também em produtividade e confiabilidade.

Empresas e Organizações que Implementaram MRM e Seus Resultados

O Maintenance Resource Management (MRM) tem se mostrado uma ferramenta importante para reduzir erros humanos e aumentar a segurança operacional na aviação. A seguir, alguns exemplos de companhias aéreas, organizações de manutenção e militares que implementaram programas baseados nos princípios de MRM, com resultados observáveis:

US Airways (atual American Airlines)
A US Airways implementou um programa de MRM em parceria com o sindicato de mecânicos (IAM&AW) e a Federal Aviation Administration (FAA), incluindo formação em fatores humanos, comunicação, consciência situacional e trabalho em equipe. Estima-se que essas reformas de manutenção tenham gerado um impacto positivo de cerca de US$ 200 milhões em cinco anos, refletindo melhorias em eficiência operacional e redução de erros de manutenção.

Delta Air Lines – Delta TechOps
Na divisão de manutenção Delta TechOps, programas estruturados de manutenção com forte componente humano e uso de dados resultaram em ganhos expressivos: a precisão de previsão de demanda de peças passou de ~60% para mais de 90%, e o tempo médio de reparo de motores caiu de 150‑200 dias para menos de 90 dias, aumentando eficiência e confiabilidade operacional.

Organizações de manutenção e MROs globais
Diversas organizações de manutenção de aeronaves adotaram práticas alinhadas ao MRM, com treinamento em fatores humanos, supervisão e análise de erros em operações de linha e revisões de base. Estudos indicam reduções de danos de solo entre 43% e 73% quando medidas de MRM foram aplicadas, mostrando impactos tangíveis na segurança e eficiência.

Organizações militares – United States Air Force (USAF)
A USAF implementou programas de MRM voltados para manutenção de aeronaves militares, focando em fatores humanos, comunicação eficaz e conscientização situacional. A aplicação dessas práticas permitiu reduzir manutenções não planejadas em cerca de 30%, melhorando prontidão operacional e confiabilidade.

Evidências de estudos internacionais
Relatórios da Australian Transport Safety Bureau (ATSB) mostram que fatores humanos estão presentes na maioria dos incidentes de manutenção, indicando que intervenções como MRM têm alvo mensurável e legítimo. Estudos acadêmicos também apontam que programas de MRM maduros podem reduzir incidentes de manutenção e danos de solo de forma significativa, com melhorias tangíveis na segurança e eficiência operacional.

Dificuldades na implantação

Mesmo com os benefícios claros, a implantação de MRM enfrenta desafios. Os principais são:

  • Resistência cultural e hierarquias estabelecidas: Em muitos ambientes de manutenção, há forte hierarquia, normas informais (“sempre fizemos assim”), pouca comunicação aberta. Mudar essa cultura é demorado e exige apoio visível da liderança.
  • Integração com processos existentes e mensuração de resultados: Um curso isolado tem impacto limitado. É necessário integrar o MRM aos sistemas de manutenção, de reporte, de indicadores de segurança. Também, medir resultados em termos de cultura ou comunicação é mais difícil que medir falha técnica.
  • Recursos de tempo, custo e continuidade: Treinamento exige tempo fora da produção. A equipe está sob pressão de produtividade, prazos de retorno de aeronaves, turnos variados. Sem reforço, os aprendizados se perdem.
  • Sustentabilidade da mudança de comportamento: Mesmo após o treinamento, hábitos antigos retornam se não houver reforço, supervisão, cultura de reporte, lições aprendidas.
  • Adaptação ao contexto local: Cada organização de manutenção tem seus tipos de aeronave, perfil de equipe, idioma, cultura organizacional. Um “template” genérico de MRM pode não encaixar perfeitamente – é preciso customizar.
  • Pressão operacional: Manutenção de aeronaves está sob forte pressão de tempo, mudança de turno, múltiplas equipes, pendências logísticas — o que pode dificultar as práticas recomendadas de MRM como briefing/debriefing, tempo para reflexão, reporte de risco.

Essas dificuldades não tornam o MRM inviável — apenas mostram que sua implantação exige planejamento, liderança e persistência.

Etapas recomendadas para implantação de um programa de MRM

Para quem deseja adotar ou fortalecer o MRM numa organização de manutenção aeronáutica, segue uma sugestão de etapas práticas:

  1. Compromisso da alta gestão: A liderança deve demonstrar visível apoio ao programa — alocando recursos, comunicando importância, participando de forma visível.
  2. Diagnóstico da organização: Avaliar o estado atual: cultura de manutenção, comunicação entre equipes, briefing/debriefing, reporte de incidentes, supervisão, turnos, mudanças.
  3. Desenho do programa adaptado: Personalizar o conteúdo do MRM à realidade da organização — idioma, tipos de aeronave, perfil das equipes, cultura local.
  4. Treinamento inicial: Ministrar o curso de MRM cobrindo temas como comunicação, liderança, gerenciamento de carga de trabalho, consciência situacional, tomada de decisão, reporte de erro.
  5. Integração com processos operacionais: Incluir no dia‑a‑dia da manutenção práticas como briefing e debriefing, handover de turno, reporte de situações de risco, análise de incidente, lição aprendida, supervisão focada em fatores humanos.
  6. Medir e acompanhar resultados: Estabelecer métricas antes e depois da implantação (ex.: atitudes de comunicação, número de relatórios de risco, incidentes de manutenção, retrabalho) e acompanhar longitudinalmente. Exemplos de metodologias estão documentados em estudos.
  7. Reforço e continuidade: Realizar reciclagens, workshops, sessões de lição aprendida, envolver supervisores e técnicos regularmente, promover cultura de melhoria contínua.
  8. Feedback e ajuste: Utilizar os dados coletados para ajustar o programa — focar em áreas críticas, adaptar conforme evolução da organização, manter visibilidade dos resultados para motivar a equipe.
  9. Sustentar a cultura: Trabalhar para que o MRM não seja visto como um curso que “acabou”, mas como parte integrante da cultura de manutenção e segurança da empresa.

Considerações finais

A adoção de um programa de MRM representa um salto de paradigma para a manutenção aeronáutica. Em vez de somente focar no “fazer manutenção conforme checklist”, promove‑se uma visão onde a equipe, a comunicação, o contexto humano e a cultura de segurança são tão importantes quanto os componentes, ferramentas e procedimentos técnicos.

Embora a implementação não seja trivial — ela exige comprometimento, recursos, mensuração e adaptação — os benefícios em termos de segurança, confiabilidade e eficiência fazem com que o esforço seja justificável. Os exemplos reais de sucesso indicam que o MRM funciona quando inserido de forma integrada, continuada e adaptada à realidade da organização.

Se a sua organização de manutenção está considerando implementar ou reforçar um programa de MRM, vale ver o MRM não como “mais um curso”, mas como parte estruturante da cultura de manutenção e segurança.

Aproveite para se familiarizar com o Crew Resource Management (CRM). Acesse: https://oaeronauta.com.br/crm-na-aviacao-a-historia-os-acidentes-e-a-importancia-da-gestao-de-recursos-de-tripulacao/

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